Dr. José Diniz é paramirinhense; Advogado; Músico; poeta; escritor e Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio Grande do Norte

Um dia, quando subia a ladeira de Seu Herculano, jazia na esquina do cruzamento um corpo de homem, e, a supor pelo local em que se encontrava, estava completamente embriagado. Eu empurrava um carrinho de mão (carriola) com a feira semanal de casa. Coisa que fazia todos os sábados. Levava saquinhos de pano feito em casa com arroz, feijão, polvilho, farinha de mandioca e açúcar; rapadura, fussura, carne seca e verduras; frutas da época e palha de milho para enrolar cigarro.

******Por estes tempos, eu já andava enfadado com a tarefa, pois há pouco havia aprendido a engraxar sapatos e precisava chegar cedo ao ponto, antes que a concorrência ocupasse-o, mas era praticamente impossível. Meu pai ia cedo à feira, mas passava muito tempo conversando, o que retardava em muito o término das compras. Quando eu descia para a feira, levava comigo a caixa de engraxate e a deixava sob uma barraca de roupas de um conhecido. Quando acabava de levar a feira em casa, corria para a praça da feira, sob uma velha figueira bem ensombrada.
******Mas aí, o homem se levantou, se dirigiu a mim e pediu um trocado. Disse-lhe que não tinha, mas que se ele levasse até em casa o carrinho, eu poderia pagá-lo com o tão desejado gole de pinga. O homem logo se restabeleceu. E seguimos juntos para casa. Quando lá cheguei, minha mãe já me esperava com uma pilha de lenha para lascar com o machado. Aproveitei e aumentei o cachê, e ele fez a tarefa. Ao sorver com sofreguidão aquela talagada de cana, desabou ali mesmo na calçada ao lado de casa, na sombra de um coqueiro. Eu o deixei repousar e corri até a feira para ganhar uns trocados.
******No sábado seguinte, assim que pus o carrinho para fora do portão, logo o avistei sentado no meio-fio, acho que me esperando. Mal passamos por ele, deu bom dia e emparelhou, nos acompanhando até a feira. Meu pai já o conhecia de longas datas, mas em outras circunstâncias, como um homem ordeiro e decente. Carregando feira, meu pai não o supunha. Em pouco tempo ele já acompanhava o meu pai sozinho à feira e fazia pequenos serviços em casa ou na rua. Já passava grande parte na semana lá em casa mesmo.
******Eu nunca soube ao certo a razão dele ter abandonado a fazenda onde lidava numa pedreira e cultivava alguns cereais. Não sei se fora a dureza da lida, intriga com parentes ou a força do vício, ou mesmo tudo isto junto, o certo que já o conheci vivendo de bar em bar, mendigando cana e envolvendo-se em brigas. Mui raramente visitava a família na roça. Meu pai já o remunerava com alguns vinténs e já podia controlar as horas das bebedeiras diárias. É claro que meu pai também impunha alguma disciplina, e ele, na maioria das vezes, conseguia atender. 
******Do nome, só sei que se chama José de alguma coisa da Silva. Era mais conhecido como Zé do Bode, que também não sei a origem da alcunha. Já ouvira uma vez alguém comentar que há muito tempo atrás chegou a ser um homem de posses, quando produzia e vendia paralelepípedos para o Município. A história parece verossímil, mas era difícil de acreditar. Nesta época, já deveria ter ultrapassado os seus cinquentas anos. E era um homem muito experiente e conhecedor de muitas artes. Nas horas vagas nos ensinava muitas coisas da vida.
******Quando ganhei o cavaquinho, era comum ele solar duas ou três musicas; não passava disso, mas era o suficiente para atrair a nossa atenção, principalmente quando solava “Meu pião” de Zé do Norte. Como gostava muito de pescar, nos ensinou também a encontrar chumbo e fazer chumbada para os anzóis. Lidava bem com as fruteiras do quintal, que cuidava com muito esmero e ciência. Não raramente jogava dama conosco na calçada e aprontava baladeiras de borracha de seringa do hospital. Mas do que mais gostava mesmo era de puxar um fole de oito baixos, que nunca pode comprar.
******Um belo dia, saiu para visitar a família e não voltou no dia aprazado. Já estávamos muito apegados a ele e ficamos todos em casa preocupados. Passou uma semana, duas e nada. Alguém o vira bêbado numa festa nos Critais, mas ele não voltava. Um mês depois tivemos a notícia de que ele estava caído na Rua de Traz. Corremos até lá para trazê-lo de volta para casa, mas ele estava fora do ar, não reconhecia mais ninguém. Trouxemo-lo assim mesmo. Mantivemo-lo num rancho de guardar ferramentas no fundo do quintal, sob os protestos de meu pai.
******Em uma semana, ele já estava refeito. Não se lembrava praticamente de nada. Meu pai lhe chamou a atenção e repreendeu-o duramente. Meio desconfiado, passou a evitá-lo de vergonha. Tinha me prometido levar com ele numa destas idas à sua casa, mas depois disso, meu pai não mais deixou. Principalmente depois que foi comprar um café para torra e só voltou uma semana depois, sem o café. Meu pai ficou furioso com José. E ele só dizia “Desculpa companheiro!”, “Desculpa companheiro!”.
******Com o passar do tempo, companheiro foi recobrando a confiança do meu pai que já lhe delegava a maioria das tarefas de casa. Mas o apego ao gole de manguaça era cada vez mais intenso. E voltaram as crises de amnésia. E nossa vigilância sobre ele aumentou também. Não o queríamos perdê-lo de jeito algum. Um dia, quando meu pai lhe perguntou se já havia jantado, ele respondeu que não. Meu pai obrigou a minha mãe a dar um segundo jantar a ele. Mas meu pai não viu, e perguntou novamente, pois ele continuava como sempre escanchado na janela como sempre fazia ao esperar o jantar, pois quando estava bêbado não entrava em casa. E, quando minha mãe disse ao meu pai que já havia dado a ele a janta duas vezes, meu pai não acreditou.
******Na semana seguinte, Zé encontrou no quintal uma pedra de quartzo translúcido e pediu a meu pai para guardar como se fosse uma pedra preciosa. Quando a psicose agravava ele pedia a pedra e ficava fitando-a toda a noite. Alcançou tal severidade que chegou a começar a ouvir vozes. Pela manhã, ele nos contava que Maria Helena, figura da imaginação dele, havia falado com ele à noite e que lhe havia pedido para desenterrar um tesouro que estava lá no quintal, junto ao tanque de lavar roupas.
******Na noite seguinte, lá estava ele no quintal a abrir um buraco do tamanho do mundo, à procura do tesouro de Maria Helena. Tentamos várias vezes dissuadi-lo de que não havia tesouro algum. Era inútil. E toda a noite ele voltava a abrir o buraco. E nas manhãs, meu pai o forçava a fechar o buraco. Como ele não se lembrava de nada que tinha feito, atendia. Na verdade, a aventura lembra a lenda do vestido de Penélope. À noite, novo delírio, e voltava a abrir novamente o buraco. Meu pai já havia retirado as doses diárias de pinga, mas o delírio persistia. De manhã, era a pedra de cristal valiosa; à noite, o tesouro de Maria Helena. Meu pai já estava perdendo a paciência com José, embora compreendesse a enfermidade.
******Um dia, quando lhe dávamos banho, coisa que não fazia há vários dias, meu irmão mais novo teve uma ideia brilhante. Usar o próprio delírio de José contra ele. Foi dito e feito. Numa noite, já altas horas, quando ele já desaparecia dentro do buraco, meu irmão se escondeu no mato, entre as árvores, e começou a chamar por ele, como se fosse a própria Maria Helena. E disse em voz sombria: “José, eu sou Maria Helena. E meu tesouro que é seu, eu guardei em outro lugar para evitar que outra pessoa ponha as mãos nele. Você deve fechar este buraco e esperar meu sinal e ficar sem beber. Você será um homem rico!”.
******Ele ficou meio assombrado e disse à voz que faria tudo que ela quisesse e que não o abandonasse. A voz voltou a transmitir a mensagem e ele começou a fechar o buraco. Pela manhã ainda o encontramos vagando pelo quintal, tentando ouvir mais uma vez a voz de Maria Helena. E assim passou todo o dia, sem banho, sem comer e sem beber. Ficamos preocupados. Talvez a terapia tenha sido muito intensa. E era preciso dar novas instruções. E a voz voltou na madrugada seguinte: ““José, eu sou Maria Helena e você está me desobedecendo. Levante-se daí e vá tomar banho. Você deve tomar café e almoçar e jantar, além de trabalhar e jogar fora essa pedra maldita de cristal. Se você me desobedecer, eu lhe tiro o tesouro!”. Pela manhã o encontramos varrendo o quintal e carpindo a relva acumulada.
******Minha mãe lhe serviu café e tudo parecia que nada tinha acontecido. Minha mãe lhe deu sabão, bucha e roupa limpa. Aparentemente parecia que estava se restabelecendo, ainda que continuasse a falar que tinha ouvidos vozes e conversado com Maria Helena. Algumas semanas depois, já era um homem completamente normal. E até resolveu ir visitar a família. Quando alguém lhe oferecia bebida, dizia que Maria Helena não deixava; e explicava quem era Maria Helena.
******Pouco tempo depois, quando as chuvas chegaram, ele comunicou a meu pai o interesse em voltar a plantar nas suas terras. Meu pai lhe deu alguns subsídios, e, para nossa tristeza, ele partiu. Durante alguns meses seguintes, ele ainda aparecia aos sábados para levar a feira, e, à tarde, voltava para a sua casa para cuidar do plantio e das crias. Aposentou-se como lavrador rural. E cada vez menos, aparecia lá em casa. Não bebia nem contava mais “causos”. 
******Só uma coisa não mudou: Maria Helena. Quando a seca não lhe permitiu mais continuar o cultivo de cereais e verduras, voltou para a cidade, para morar com uma filha. Como foi paulatinamente ridicularizado pela história de Maria Helena, ela foi desaparecendo do seu imaginário, e ele foi cedendo aos encantos da vida. Voltara a beber e a fumar, não como antes, mas com alguma rotina.
******Numa fatídico dia de sábado, depois de voltar da feira, já quase noite, foi pescar na lagoa, como fazia às vezes. Ninguém sabe explicar o que verdadeiramente aconteceu. O que se sabe ao certo é que José amanheceu boiando na margem, todo carcomido de peixes e outros animais lacustres, lembrando o poeta: “E agora, José? … Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?” (Carlos Drummond de Andrade, In Poesias, Ed. José Olympio, 1942), você que tem nome e tem filhos! (José Diniz de Moraes, Natal/RN, 01/05/2015) 
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