Com inflação e desemprego em alta, especialistas afirmam que cenas de brasileiros mendigando e revirando o lixo para comer serão usuais.
Infelizmente, diante da insensibilidade e negacionismo de muitos que ainda não querem enxergar a real situação, é preciso ver cenas de brasileiros implorando por migalhas nos cruzamentos em grandes centros urbanos, mendigando pelas ruas de pequenas cidades, ou buscando comida em um caminhão de lixo, como ocorreu nesta semana em Fortaleza (CE), para entenderem que fome não é uma sensação rara e passageira para boa parte da população do país, mas uma realidade constante que se tornou ainda mais usual com a pandemia de Covid-19.
Há nomes e rostos por trás dos números altos do desemprego, com 14,1 milhões de brasileiros e brasileiras que não têm mais renda e precisam pagar contas e comprar comida, e isso em um país desgovernado, que a inflação elevou em 10,25% os preços nos últimos doze meses. “A pandemia não trouxe a fome, graças a medidas emergenciais impostas pelo congresso, mas intensificou a desigualdade. Sim, antes havia quem buscasse comida nos restos jogados fora, mas hoje existem mais pessoas nessa situação. Infelizmente, teremos mais episódios de pobres revirando lixo”, disse o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social.
Em pouco mais de 01 ano, a renda média dos 50% mais pobres caiu 21,5%. No Rio de Janeiro, moradores buscavam restos de carne em ossos jogados no lixo, em Santa Catarina homens e mulheres compram partes de animais que antes não teriam mais serventia. No centro de São Paulo, pessoas fazem fila para pegar restos de comida. O diretor da FGV Social cita um estudo feito pela entidade que analisou dados de 40 países para dizer que esse impulso na desigualdade ocorreu apenas no Brasil durante a pandemia. “Em todos os outros locais houve o contrário, foi observada uma ligeira aproximação entre a renda de pobres e ricos, enquanto aqui o distanciamento aumentou.”
Marcelo Neri afirma que para entender o agravamento da pobreza é preciso ir além da análise de grandes números, como o PIB (Produto Interno Bruto). “O que adianta o país produzir mais se, lá em baixo, muita gente perdeu tudo e não tem como sobreviver?” Ele comenta que as verbas do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) vêm caindo ano a ano, o que deixa ainda mais desamparados os serviços básicos para camada da população que se encontra em extrema pobreza. “Não basta ter apenas um auxílio emergencial ou um Bolsa Família, também é preciso entregar alimentos, garantir saúde e educação a quem não tem como desembolsar sequer o custo do transporte”, argumenta.
‘O Brasil tinha saído do mapa da fome’
“O Brasil tinha saído do mapa da fome há alguns anos e nos dias atuais, infelizmente, o nível de desemprego nunca foi tão alto”, lamenta o presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles, que também é professor de Ciências do Consumo e Opinião Pública do Ibmec. Meirelles diz que o auxílio emergencial dado pelo governo federal durante a pandemia de Covid-19 atenuou a miséria, mas não teve a capacidade de evitá-la. Como seu próprio nome diz, era uma ajuda emergencial. Para que se tenha uma ideia, em países da Europa, esse auxílio girou em torno de R$ 5 mil reais para que a pessoa permanecesse em quarentena. O presidente do Instituto Locomotiva acrescenta que a inflação superior a 10% ao ano tornou itens como carne artigos de luxo inacessíveis a boa parte dos brasileiros. “Hoje falta proteína no prato, e a situação deve piorar ainda, afinal os trabalhos estão cada vez mais precários, os preços não param de subir e o país tem dificuldade para atrair investimentos estrangeiros.”
“As pessoas têm que lutar pelo básico”
Com fome, a última coisa que as pessoas pensam é na dignidade, diz o presidente da Cruz Vermelha Brasileira, Júlio Cals. “Com o agravamento da fome e da insegurança alimentar pelo país, potencializado pela pandemia, vemos todos os dias inúmeras circunstâncias em que a população busca pelo básico. As pessoas estão tendo que lutar pelo mínimo de qualidade de vida.” Cals defende políticas públicas que pensem em efeitos também a médio e longo prazo. “É preciso alavancar a educação, gerar oportunidades de trabalho e amparar os grupos vulneráveis, mas é necessário também que a sociedade como um todo colabore para ajudar o próximo, se colocando à disposição.”
Futuro sombrio
André Gontijo, professor de Direitos Humanos do Ceub e Unieuro, centros universitários de Brasília (DF), teme que se a política econômica mantiver como única aposta os grandes números da economia, como PIB e quantidade de vagas de emprego criadas, sem o estímulo aos que estão abaixo da linha de pobreza, sem incentivo à educação, cenas de extrema pobreza como as que recentemente rivalizaram nas redes sociais serão corriqueiras. “A miséria está mais aparente porque passamos a prestar mais atenção nisso. Ao mesmo tempo, a situação da economia do país piorou, projetando esse drama de forma inédita.” Para o professor, “conjugar assistência social com capacitação é receita de sucesso em toda a história e em vários países”. Hoje a tecnologia permite a educação a distância e “é possível dar ferramentas para as pessoas com menos condições entrarem no mercado de trabalho. Sem isso, vai ser difícil recolocá-las.”