Ivanildo Dias usa o dinheiro que acumula em premiações de provas de rua para financiar corridas em sua cidade natal, no interior baiano — Foto: Arquivo pessoal
Quando Ivanildo Dias de Souza era criança, no sertão da Bahia, sua mãe não tinha dinheiro sobrando nem para comprar as balas que o menino pedia quando ela ia ao mercado.
“Tinha vontade de chupar bala, mas não tínhamos condições nem para isso”, conta ele, que foi criado só pela mãe no povoado rural de Lagoa do Meio, em Monte Santo, a 340 km de Salvador, e hoje tem 38 anos.
“Quando me mudei para São Paulo, fiquei pensando nas dificuldades das crianças de lá, porque continuava tudo a mesma coisa. Elas são bem carentes mesmo. Daí coloquei na minha cabeça de fazer uma festa para essa molecada.”
Ivanildo veio para São Paulo há mais de duas décadas, tornou-se coletor de lixo e, na capital paulista, acabou desenvolvendo sua grande paixão: correr.
Ivanildo com os filhos de Magrão e Joelton, após corrida; ele oferece brinquedos, lanche e camisetas às crianças participantes — Foto: Arquivo pessoal
Além de percorrer cerca de 10 km correndo atrás do caminhão e coletando mais de 3 toneladas de lixo por dia, ele treina diariamente cerca de 20 km na zona leste paulista, onde mora.
O resultado tem vindo em dezenas de vitórias e boas colocações em tradicionais provas de rua: só neste ano, ele diz ter vencido 44 troféus em provas atléticas, incluindo um segundo lugar nos 10 km do Troféu da Independência. Na São Silvestre do ano passado, Ivanildo ficou em 27º lugar, entre 30 mil inscritos, e sua história de superação já rendeu reportagens na imprensa (a BBC News Brasil publicou um perfil em reportagem de 2016).
Corridas de rua anuais
A premiação em dinheiro de algumas provas Ivanildo poupa para uma destinação especial: incentivar nova legião de corredores em sua cidade natal na Bahia.
Ele criou, há 13 anos, uma corrida de rua que leva o seu nome e que virou atração entre os cerca de 8 mil habitantes de Lagoa do Meio e região.
Grupo de entusiastas da corrridas faz vaquinha para bancar transporte para as competições — Foto: Arquivo pessoal
“É uma corrida tanto para a molecada como para os adultos”, explica ele à BBC News Brasil. “Faço provas de 100 metros para os pequenos, de mil metros para as crianças de 12 anos e de 6 km para quem tem 17 anos ou mais.”
Por ano, Ivanildo diz investir R$ 9 mil do próprio bolso e do que ganha de patrocinadores para financiar sua própria viagem à Bahia e para distribuir lanches, camisetas e prêmios da corrida, que vão desde brinquedos até cheques de até R$ 300 para os mais bem colocados.
“Minha mãe morreu dois anos atrás, então só viajo para a Bahia por causa dessa corrida. E sofro muito quando vou daqui (SP) para lá. Afinal, quem ainda está me esperando lá? Mas tem essa molecada, e prometi que ia fazer a corrida para elas por toda a minha vida.”
A tradição criada pelo atleta acabou impactando a vida de muitas pessoas em seu povoado, onde até então a única opção de esporte era o futebol de várzea.
Joelton foi morar em São Paulo e compete apadrinhado por Ivanildo — Foto: Arquivo pessoal
“São crianças de classe média muito baixa mesmo, elas ficam na expectativa pela corrida”, conta Joelton Dias de Jesus, 34, que participa das provas adultas desde o início e se diz seu “maior vencedor”: já ganhou sete vezes nas categorias em que competiu.
Acabou sendo apadrinhado por Ivanildo, que o trouxe a São Paulo e arrumou-lhe um emprego também como coletor de lixo da empresa Ecourbis – além de pagar sua inscrição para a última edição da São Silvestre.
Grupo de entusiastas da corrridas faz vaquinha para bancar transporte para as competições — Foto: Arquivo pessoal
“Era o meu sonho participar da São Silvestre. Acabei ficando aqui (em SP) por causa da corrida e do emprego”, diz Joelton, que assim como Ivanildo treina diariamente “correndo atrás do caminhão de lixo”.
“A corrida virou uma paixão para mim; é saúde e é lazer.”
Seu filho, de 7 anos, também participa regularmente das provas de Ivanildo, e ficou em primeiro lugar na corrida do ano passado. Joelton torce para que um dia ele também corra a São Silvestre.
Grupo de corridas
O ânimo gerado pelas provas deu origem, há cinco anos, ao grupo de corridas “Flash Sport”, que reúne algumas das dezenas de corredores amadores de Monte Santo e região para compartilhar dicas de treino via WhatsApp, além de fazer vaquinha para dividir os custos de transporte para as provas de rua regionais.
O grupo também levou à criação de mais uma corrida de rua na região, esta no povoado de Lagoa do Saco, a 20 km de Lagoa do Meio.
Ivanildo trabalha na coleta de lixo pela empresa Ecourbis, em São Paulo — Foto: Damasco Filmes
“A gente ouvia falar das corridas de Lagoa do Meio e quisemos fazer uma aqui. E o público só aumenta, desde crianças até gente da terceira idade”, conta o guarda municipal José Raimundo Andrade de Brito, o Magrão, organizador do Flash Sport.
“Na próxima corrida daqui de Lagoa do Saco, esperamos que passe de 200 inscritos de oito cidades”, prossegue Magrão.
“E tem gente que busca não só pódio, mas mais saúde. Aqui a maioria dos empregos é na prefeitura – professores, profissionais da saúde -, e muita gente vai do trabalho pro sofá e do sofá pra casa. Então correr incentiva o pessoal a sair do sedentarismo.”
É o caso de Marina Eunice de Souza, 41, que passava o dia inteiro sentada no mercadinho onde trabalha com o marido. “Fiquei com vontade de participar de uma das corridas porque aqui quase não tem esporte para mulheres”, diz ela, que há dois anos participa do grupo de Magrão e perdeu seis quilos com a atividade física.
“E foi muito bom para mim. Eu faço mais caminhada do que corrida, mas minha saúde melhorou bastante. Eu estava precisando mesmo de um esporte.”
Mas, entre que competem com Magrão no Flash Sport, tem gente com expectativa maior do que apenas manter a boa forma: o lavrador Fabio Jesus Correia, 18 anos, até pensa em se profissionalizar no atletismo, depois de obter boas colocações em provas de rua do interior baiano.
“Neste ano já corri em quatro provas da região; fiz 7 km em 18 minutos”, conta. “Hoje faço provas de 6 km, mas quero correr maratonas. Se conseguir apoio, quero virar corredor.”
Fabio participa das corridas de Ivanildo desde os 11 anos – e chegou a correr descalço nas primeiras provas.
“Eu não tinha condições nem de comprar sapato, e o Ivanildo me ajudou.” Hoje, o plano de Ivanildo é trazer Fábio para trabalhar em São Paulo, assim como fez com Joelton.
Fabio treina três vezes por semana, entre 10 km e 12 km por vez, bem cedo pela manhã, antes de seguir para roça para trabalhar.
“Temos alguns meninos como o Fábio, que podem ter futuro na corrida”, argumenta Magrão. “Eles treinam bastante e conseguem pódio em quase toda a corrida de que participam por aqui. Se alguém investir neles, essas sementinhas (plantadas) pelo Ivanildo podem dar fruto.”