Rara, ação de unidade municipal objetiva tornar luto menos traumático; UTI tem pontuação por vaga.
“Pai, você abriu um olho para mim”, diz uma dona de casa à beira da cama do pai, um doente de coronavírus de 80 anos, cujo quadro é considerado terminal. Cercado por cortinas, ele está em uma ala do Hospital Municipal do M’Boi Mirim, bairro da zona sul na periferia da capital, voltada para casos de cuidados paliativos.
A unidade, atualmente, é uma das que concentram casos de coronavírus naquela região da cidade, onde as mortes mais têm crescido nas últimas semanas. Diagnosticado com a doença, que se somou a um câncer de próstata e a sequelas de um AVC, o aposentado ainda trocava algumas palavras com a família até poucos dias atrás.
“Agora, a gente espera que ele esteja escutando. Mas é pouca resposta que tem, não fala, tem pouco movimento”, diz a neta do homem, uma estudante de 18 anos. “Eu me sinto muito grata por ter essa possibilidade de poder vê-lo, mas também é triste: gente está podendo vir porque ele está piorando cada vez mais.”
Mesmo com máscaras, protetores faciais e outras partes do traje de segurança, este tipo de visita é rara em hospitais do Brasil e do mundo. Geralmente, pacientes graves do novo coronavírus ficam totalmente isolados. Morrem sozinhos e, no cemitério, os familiares também são privados do velório, devido à chance de contaminação.
Inaugurado em 2008, o hospital da Prefeitura de SP no M’Boi Mirim é administrado pelo Hospital Israelita Albert Einstein, que também gerencia o Hospital Municipal de Campanha do Pacaembu. Devido à pandemia, o local virou referência para casos da doença na região. A UTI saiu de 20 para 220 vagas, e um novo setor foi erguido em menos de um mês com dinheiro da iniciativa privada. Desde o início da pandemia, a unidade já atendeu 1.545 pessoas, sendo que 779 tiveram alta e 209 morreram.
Com muito mais leitos e também mais mortes do que costumava registrar, o hospital vem adotando a prática das visitas de despedida para facilitar o processo de luto das famílias em meio à pandemia de coronavírus e para tentar trazer maior conforto aos pacientes em seus últimos momentos de vida.
“Para alguns pacientes que a gente percebe que têm poucos dias de vida, a gente conseguiu abrir exceção para que as famílias pudessem ter a despedida, de forma muito cuidadosa. A gente disponibiliza os EPIs, a família é orientada, tem o apoio da psicologia”, afirma a intensivista Débora Carneiro, 32, que atua na área de cuidados paliativos.
“Acredito que é basicamente essa forma de lidar com o luto que tem sido mais difícil, tanto para famílias quanto para equipes”. As visitas duram cerca de dez minutos, costumam ter de dois a três membros da família. Parentes que integrem grupos de risco não podem participar —nesse caso, têm de seguir com videoconferências. Algumas vezes, funcionários do hospital também leem cartas para os pacientes, mesmo que estejam intubados e inconscientes, situação comum entre os casos mais graves da Covid-19.
“A partir do momento que o paciente chega no pronto-socorro, esse contato físico [com os parentes] acaba. Então muitas vezes o familiar fica angustiado porque faz uma semana que o paciente está internado e ele não viu. Ele tem informação, boletim médico, mas a gente percebe que o ver às vezes proporciona um aconchego para o parente”, diz a psicóloga Gisele Soares, 36.
Também psicóloga no hospital, Amanda Caroliny Santos, 26, afirmou que a velocidade com que o coronavírus mata abreviou o tempo para assimilar a perda. Por isso, desde abril houve a adoção das chamadas de vídeo e visitas presenciais, o que tem sido importante para os parentes.
“Quando eles ligam depois do óbito para conversar um pouquinho, eles afirmam que tem sido de extrema importância que eles possam ver a última vez aquele familiar, falar o que eles queriam falar, pedir desculpa para alguma coisa. É sempre o que fica, né? Tem sido muito positivo, apesar de muito difícil”, diz.
A maioria dos pacientes graves de coronavírus está intubada, mas há aqueles que, antes de entrar no procedimento, resolvem se despedir. Além disso, passam instruções práticas, como senhas de cartões e contas de banco. Se melhoram e acordam, se mostram muito surpresos e felizes, relata a equipe do hospital.
Nem todos os pacientes graves vão para a UTI.
O Hospital do M’Boi Mirim segue o protocolo criado pela equipe do Hospital Albert Einstein para o contexto de escassez de recursos durante a pandemia, que estabelece uma espécie de pontuação pelas vagas de UTI. “No contexto da pandemia, se você não aplica uma lógica assim, o risco é de, quando houver indisponibilidade do recurso, chegar um paciente que deveria ser prioritário e esse recurso não estar disponível”, diz intensivista Leonardo Rolim Ferraz, médico do Einstein e um dos autores do protocolo.
Rolim afirma que o critério de meramente dar a vaga a quem chegou primeiro pode causar injustiças. Por isso, o principal critério usado para a prioridade é concedê-la às pessoas que vão tirar o máximo proveito da UTI, colocando-as à frente das pessoas que já se recuperariam sem estar na unidade intensiva e das que não se recuperariam mesmo que tivessem acesso a ela.
Estes últimos vão para o setor de cuidados paliativos, que visa dar melhor qualidade ao que resta de tempo de vida dos pacientes, um setor ocupado muitas vezes por pessoas com comorbidades como doenças pulmonares crônicas, doenças cardíacas e sequelas de AVC, entre outras.
O intensivista diz que geralmente não se escolhe entre pacientes, mas se avalia cada a situação individual. No entanto o artigo afirma que “se houver empate na pontuação a decisão pode basear-se no critério de estimativa de anos salvos e ser profissional da saúde envolvido nos cuidados de pacientes de Covid-19”. Neste último caso, leva-se em conta o fato de que essas pessoas, uma vez recuperadas, podem salvar mais vidas.
A UTI do hospital na zona sul está com 86% de ocupação, mas a diretora da unidade, a pediatra Fabiana Rolla, 45, diz que o chamado processo de escolhas difíceis independe das vagas, pois é necessário que esteja implantado quando a situação eventualmente aconteça. “A Covid transforma a catástrofe pontual numa coisa permanente. Mas todo hospital tem que ter um protocolo de catástrofe, porque pode um ônibus bater em outro aqui na frente e pode chegar uma quantidade de pacientes graves que excedem sua capacidade”, diz Fabiana.
O protocolo ajuda a tirar das costas dos profissionais a decisão sobre quem terá acesso a UTI e quem não terá. Além da pandemia, esses funcionários já seguem sob forte estresse por causa do risco de contraírem eles mesmos a infecção e de infectarem seus parentes. Fabiana, por exemplo, mora com os pais idosos e duas filhas adolescentes. Em casa, ela só anda de máscara, atitude comum entre as pessoas que mantêm contato com familiares mesmo atuando em um hospital que tem a maioria das suas alas destinadas apenas a casos de coronavírus.
Outro aspecto doloroso para a equipe é ver os colegas que atuam no hospital internados ali em estado grave. “A gente tem um técnico em enfermagem nosso em estado gravíssimo. E é um colaborador da própria UTI, sendo cuidado agora pelos colegas. Foi intubado pela própria equipe do plantão dele. Isso mexeu com a sanidade de todo mundo”, diz a diretora.
Outro caso, de um médico do hospital que ficou em estado grave, terminou bem. O profissional se recuperou e já voltou a trabalhar. Além de ver colegas escaparem da doença com alegria, os funcionários também costumam vibrar com as altas de pacientes comuns, principalmente quando se tratam dos casos mais graves. Em um ambiente sem acompanhantes permanentes com os pacientes, desenha-se uma dependência muito maior dos doentes em relação aos funcionários.
“A gente está ali para dar esse suporte, a gente é meio familiar deles naquele momento”, diz enfermeira Andrea Carneiro, 50, que se voluntariou para atuar contra o Covid-19 no local. “O paciente consciente é mais carente, tem mais medo, é mais inseguro.” Quando algum deles em estado grave vai sair, a informação logo roda no grupo de WhatsApp dos funcionários dos vários setores, que aparecem para comemorar.
Como há muitos profissionais evangélicos no local, um grupo de funcionários, do qual alguns são antigos integrantes de um coro hoje desativado, tocam músicas religiosas e cantam por todo o trajeto da saída do leito até o encontro com familiares.
A reportagem presenciou a saída do designer Jaime José da Costa, que ficou internado com coronavírus por mais de um mês em estado gravíssimo. Com muitos membros da família infectados, no período em que estava inconsciente ele perdeu a mãe e um irmão para a a doença. Ao sair, reencontrou a mulher, emocionada, e recebeu muitos aplausos na recepção de todos que estavam na recepção do hospital. “Tive que ir para a intubação, depois teve complicações pelo fato de ficar muito tempo no hospital”, disse à Folha. “Graças a Deus, agora estou voltando para a casa.”
Por: Artur Rodrigues e Lalo de Almeida Fonte: Folha de São Paulo