É duro quando nem sua própria mãe acredita muito no que você anda fazendo. Osvaldo Soliano começou a estudar energia solar logo depois que se graduou em engenharia elétrica na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Foi para a França fazer mestrado e depois emendou um doutorado na Inglaterra, sempre metido com aquele negócio que era quase coisa de hippie.
Mas aí aconteceu que a mãe viajou para Israel e viu que lá um monte de casas tinham placas solares. Na volta, anunciou empolgada ao filho que talvez aquilo tivesse mesmo futuro. Osvaldo, que se tornou um dos maiores especialistas em energia renovável do país, gosta de contar a piada a seus alunos do bacharelado interdisciplinar de ciência e tecnologia da Ufba, ainda mais que hoje pode ilustrar o caso mostrando a profusão de usinas solares e eólicas que se espalharam pelo Brasil na última década. Até 2030, 30% da matriz energética brasileira deve ser representada pelo vento, pelo sol e outras fontes alternativas.
A Bahia vem ganhando destaque neste cenário, com um mundo de terras áridas de onde agora brota energia. Curiosamente, o que não cresceu muito nesse período foi a microgeração de energia, aquela residencial avistada no início da década de 1990 pela mãe do pesquisador, popularizada na Europa. Em entrevista à Muito, Osvaldo explica por que isso não aconteceu e mostra figuras poéticas, como a do garimpador de vento, para você ver o tanto de beleza que pode morar no universo dos cálculos e estruturas.
Em 10 anos, a produção de energia renovável no Brasil cresceu 30%, segundo dados do Ministério de Minas e Energia. O que foi determinante para esse crescimento?
O ponto de partida foi um programa chamado Proinfa (Programa de Incentivo às Fontes Alternativas), de 2002. Antes, tinha apenas projetos experimentais na academia. Não se pensava em energia solar ou eólica conectada à rede. Era só para o meio rural, com bateria, isso lá em 1992, 1993. Quando trabalhei na Coelba, consegui convencer a diretoria e compramos os três primeiros aerogeradores para medir o vento no estado. Cheguei a instalar um em Ilha Grande de Camamu. Depois fui trabalhar no Rio, onde criei o Centro de Referência para Energia Solar e Eólica, o Cresesb. Era tudo coisa pequena, sempre com a universidade envolvida. E aí veio o Proinfa, que foi uma lei criada na gestão de Fernando Henrique Cardoso.
O relator da lei é até baiano, deputado [José Carlos] Aleluia.Foi a situação do apagão que criou os incentivos para três fontes: eólica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas, que a gente chama de PCH. Não tinha ainda a solar, que na época era muito cara. O programa foi implementado no governo Lula. E agora a gente tem o desafio de conectar energia solar e eólica com as centrais hidrelétricas, para tornar mais firme a energia. Esse é o grande desafio em nível nacional. Porque você tem três fontes que são intermitentes, água, sol e vento, para garantir o sistema elétrico. Como é que vamos juntar isso de tal forma que dê uma garantia? O Brasil tem um backup fabuloso que são as hidrelétricas, desde que tenham reservatório.
E nesse período os investimentos conseguiram se manter estáveis?
Dilma [Rousseff] era muito refratária à solar e à eólica, porque a lógica era baratear a tarifa. E botando algo que é mais caro, você onera a tarifa. Claro, tudo tem prós e contras. Dilma atrasou o programa eólico, realmente. E aí tivemos o primeiro leilão em 2005 e depois, até 2009, não se fez leilão. Parou completamente. O Proinfa foi se enrolando. Mas aí houve uma conjuntura muito favorável. O preço foi caindo no mercado internacional e o Brasil começou a perceber que tinha uma vantagem competitiva de ventos fabulosos.
Quando Dilma saiu para ir para a Casa Civil e deixou o Ministério de Minas e Energia, quem assumiu foi um nordestino, maranhense [Edison Lobão]. Os governadores do Nordeste começaram a fazer aquele lobby. Mas o fator preponderante foi a queda dos preços. Então, em 2009, se decidiu fazer o leilão. Lembro que eu era presidente da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético eestava na Conferência do Clima, em Copenhague, quando saiu a notícia. Foi uma festa.
A partir daí, os leilões passaram a ser regulares, todo ano um específico. Hoje nem precisa mais de leilão específico para eólica, porque no último leilão, de 2017, já foi a fonte mais barata. Compete com gás natural, biomassa, tudo. Apesar do crescimento, a energia solar e a eólica ainda representam um percentual pequeno da matriz energética brasileira. Não passam dos 10%. O vento está crescendo num ritmo aceleradíssimo. Se você pensar que em alguns dias do ano passado a eólica chegou a atender 60% do Nordeste, é um número brutal. Claro que foram alguns dias. A solar é muito mais recente.
O primeiro leilão específico foi de 2014, e aí voltou a ter em 2017. Ainda está na faixa de 0,5%. Mas nós voltamos a entrar num caminho que a gente pode perseguir tranquilamente e bater em 2030 na faixa de beirar os 30%, somando todas as fontes. Repare que no Brasil já é lei o Acordo de Paris. Por força desse acordo, o Brasil se comprometeu a reduzir em 43% as emissões até 2030. Como o país vai conseguir isso? Dentre as ações estão reflorestar 12 milhões de hectares e chegar a quase 30% de renováveis, que não a hídrica. É esse o desafio que está posto, e acho tranquilamente factível de cumprir. O desafio global é desenvolver tecnologia para o armazenamento. Energia solar com armazenamento ia resolver o problema energético global.
Como está a Bahia neste cenário? Que lugar o estado ocupa?
A energia eólica começou pelo Rio Grande do Norte e Ceará, e agora a Bahia está colando neles. No que já está funcionando, é o terceiro, ainda; mas quando se considera o volume já comprado… Porque, repare, são três estágios: tem o que o cara que ganhou o leilão e ainda nem começou a obra, está atrás dos financiamentos; tem os que estão em construção e os que já estão em operação. Quando você soma isso, a Bahia passa para o primeiro lugar. O estado que tem mais vento no Brasil é a Bahia. E é um vento de interior.
O litoral da Bahia não tem vento, ao contrário do Rio Grande do Norte e Ceará. Claro, tem essa brisa maravilhosa, mas não é vento comercial. Para ser comercial, tem que ter 6 m/s. Eu velejo, e isso é uma tempestade para um barco a vela desses pequenos que a gente tem na Bahia. Ia virar tudo! (risos). Tem um termo belíssimo dos especialistas na área que é: garimpar o vento. Porque o vento você tem que achar, diferente do sol, que está mais ou menos do mesmo jeito em todo lugar. Aqui, a gente tem o vento que vai encontrar a barreira, que é a Chapada [Diamantina], então ele canaliza, e aí você cria um canal de vento.
Então, como nosso vento é de interior, exige mais logística, e aí outros estados saíram na frente. Mas quando você vê hoje o Atlas de Energia Eólica da Bahia, é um potencial de 190 GW. É um número maior do que tudo que o Brasil tem instalado hoje, em todas as fontes. Hipoteticamente, só com energia eólica você atenderia a toda a necessidade de energia elétrica do Brasil. Mas claro que não pode, porque os ventos param. Tem que ter o backup. Quanto à energia solar, a Bahia também disparou.
Nos leilões de solar, certamente está em primeiro lugar, e [capacidade] instalada deve estar também em primeiro. Tem a segunda maior usina do Brasil, lá em Tabocas do Brejo Velho, no oeste. É da Enel, originalmente italiana, que é a empresa que mais tem expandido no Brasil. Faz parques no Peru, Chile, México… Compra as placas solares numa escala dos chineses, que é brutal. Os grandes conseguem preços porque compram para o mundo inteiro.
Ia perguntar para o senhor por que a maioria das empresas em operação são estrangeiras, mas acho que já está aí a resposta.
É, é isso. A Enel quer ser a maior do mundo. Tem a Gamesa, a Iberdrola, a AES. No último leilão, os jornalistas perguntaram aos executivos da AES como eles estavam conseguindo aquele preço, porque as contas não fechavam. ‘Que milagre você está fazendo para oferecer energia tão barata?’.E eles responderam que era estratégico para a empresa, nacionalmente e globalmente, atingir níveis de penetração altos.
Essas empresas querem atingir um volume de renováveis no seu portfólio, é estratégico ter energias solar e eólica. Um pouco de estratégia, um pouco de escala justificam esses preços. O Brasil não faz reserva de mercado, e para subsidiar nesse momento implicaria fazer aportes do Tesouro. O país está quebrado… Dá para entender a pressão pela tecnologia nacional, que no longo prazo seria bom, mas tem que entender também a conjuntura atual.
Você falava desse lugarzinho árido, Tabocas do Brejo Velho, que hoje abriga a segunda maior usina de energia solar do Brasil. Esta situação está se repetindo em outros povoados e cidades pequenas, que de repente estão recebendo esses megaempreendimentos. Em que medida a população do entorno se beneficia disso?
Repare, nesses locais você não tem mão de obra qualificada, não é? Num primeiro momento da construção, vai ter toda a parte de hotel, apoio, refeição. A usina solar é construída muito rapidamente, com um nível altíssimo de automação. Depois, esse povo vai embora, e aí entra na rotina. A rotina de operação não exige um volume grande de pessoas, e as pessoas que são exigidas não são as que vivem lá originalmente, a não ser um servente, um vigilante… O impacto na economia é pequeno.
O segundo tipo de impacto é o dono da terra que passou a alugar a terra. Existe uma possibilidade não remota de haver concentração de renda. Porque quem já detém a terra já é o mais rico. Tem essa fantasia de ‘ah, são pequenos empreendedores que detêm a terra’. Certamente, não. Então, sim, de certo modo todos são puxados um pouco para cima, porque a arrecadação de impostos aumenta, mas quem está no topo da pirâmide é puxado mais ainda.
Quando se começou a falar das usinas eólicas aqui na Bahia, um ponto crítico era a falta de linhas de transmissão. As empresas recebiam pela energia gerada, mas ela não chegava ao consumidor, que ainda tinha que pagar a conta. Em que medida essa situação foi equacionada?
As linhas de transmissão são um gargalo de curto prazo e de fácil resolução, mas que ainda não foi resolvido completamente. Num primeiro momento, o governo fazia o leilão e aí só depois se fazia um outro leilão para a linha de transmissão, que quem ganhava geralmente eram as empresas estatais, como a Chesf [Companhia Hidrelétrica do São Francisco], que estão submetidas às leis que restringem o setor público. Aí, pronto, atrasava a obra e a gente tinha que pagar ao cara porque ele fez a usina, e se não tinha linha de transmissão o problema não era dele. Depois mudou a legislação, e agora a empresa quando vai concorrer num leilão já tem que oferecer o preço da geração mais a linha que ele vai construir. Isso já está no preço.
Claro que são linhas de 40, 50 km. Se forem 300 km, quem faz é o governo federal. Outra questão logística é como as pás da energia eólica são levadas para essas cidades pequenas, passando pelas estradas que nós temos, por dentro das cidades. Aí tem empresa que precisa reforçar pontes para poder passar aquelas carretas gigantescas, aumentar estrada… Quando a pá está passando, tem que parar o trânsito da cidade toda, mudar placa de sinalização… Aí tem uma esquina ali, vai dando a volta na pá, que está quase no limite de subir na calçada… É um problema. O que conta na eólica é a velocidade do vento e o tamanho da pá.
Se dobrar o tamanho da pá, a energia produzida cresce por quatro. E a velocidade do vento cresce pelo cubo. Então a tendência no mundo é crescer o tamanho da pá, e aí você vai para o mar. Como aqui nosso vento é muito bom, intenso, constante, unidirecional, nossas pás ainda podem ser menores, com 60, 70 metros. Na Europa já tem de 80 m. Imagine que 80 m é um Elevador Lacerda. Imagine transportar um Elevador Lacerda deitado para passar por nossas estradas, fazer curva?
Esse crescimento dos grandes parques solares não foi acompanhado pela microgeração de energia na casa das pessoas, não é? A gente não viu de fato um aumento das placas solares residenciais. Que fatores explicam essa estagnação da microgeração de energia?
Os países desenvolvidos criaram um incentivo chamado tarifa-prêmio. Você gera energia e o sistema elétrico paga mais quando você exporta do que quando você compra. Isso foi que viabilizou na Europa e também na Califórnia aquele boom. No Brasil, se criou outra política, a compensação de energia elétrica, com o mesmo valor para o que é produzido e o que se compra. É um incentivo na medida em que nós já compramos a R$ 600, quase R$ 700 o MW/h e se consegue produzir a R$ 300 o MW/h. Mas não tem incentivo nenhum além desse. O problema da geração é o investimento, e nós sabemos que no Brasil os juros são caríssimos.
E não tem nenhum cenário de melhora nessa direção. Há um incentivo para pessoa jurídica, mas não para pessoa física. E aí quem consegue instalar é quem tem alto poder aquisitivo. Com o aumento da escala, a previsão é que vá barateando para os demais. É como qualquer inovação tecnológica, começa caro e vai barateando. O painel solar está nessa pirâmide natural. O porteiro daqui do prédio, como sabe que eu mexo com energia solar, outro dia me perguntou se dava para botar na casa dele. ‘Eu quero ficar livre da Coelba’. As pessoas têm uma expectativa. Todo mundo faz orçamento e, quando vê o preço, desiste.
E quanto seria o preço para a casa do porteiro?
Desgraçadamente, ele teria que investir R$ 5 mil, R$ 8 mil. É caro. Numa casa de classe média-média, a gente está falando de R$ 20 mil, R$ 30 mil. No Brasil todo, existem 24 mil sistemas. Na Bahia, são 500. Imagine, 500 num universo de três milhões de domicílios. Então, ainda é desprezível. A CBIC [Câmara Brasileira da Indústria da Construção] está interessada no tema.
A indústria só cresce se tiver um ganha-ganha, se ela perceber que tem ali uma oportunidade de negócio. A construtora MRV já está utilizando painéis solares nos empreendimentos novos. Tem algo que impacta na imagem, de contribuir para o meio ambiente, mas ela também vende isso dizendo que as pessoas vão poder economizar na conta de luz. Como professor, eu não posso deixar de falar da necessidade de mais pesquisas, e também de continuidade. Nós instalamos o primeiro sistema de geração distribuída da Bahia dentro do estacionamento da Coelba, há seis, sete anos. Você vai lá e não funciona, porque um componente eletrônico quebrou. Imagine, dentro da Coelba.
Era um projeto de pesquisa, o dinheiro acabou, e aí não tem mais quem assuma a responsabilidade. Isso é frustrante. Nós instalamos um sistema híbrido isolado numa ilha de Nova Viçosa, com energia solar, eólico e bateria. Foi o primeiro da Bahia numa ilha. Não existe mais, está lá abandonado. Tiraram as placas, a maré deve ter derrubado uma parte, levaram as baterias… Acabou. E funcionou lindo, lindo, lindo. Claro que depois também é capaz de ter chegado um cabo submarino que levou energia para a ilha, mas ainda assim… Virava geração distribuída, está certo? Mas de todo modo é gratificante ver aquilo que você apostou lá atrás virar uma realidade. Conto muito essa piada para os meus alunos.
Logo que terminei a graduação, fui fazer mestrado na França e já comecei a estudar energia solar, isso na década de 1980. Depois, fui fazer doutorado, também sobre esse tema. E aí minha mãe fez uma viagem para Israel e voltou dizendo: ‘Meu filho, lá em Israel toda casa tem energia solar. Esse negócio que você faz pode ser que tenha futuro’ (risos). Ou seja, nem minha mãe acreditava no que eu fazia. É aquele maluco lá que mexe com energia solar…