Do:Folhapress

Uma ambulância adentra discreta o campus da Universidade Federal do Piauí, em Teresina. Não irá socorrer ninguém em apuros, para o alívio da tensão que se cria no ar, mas, sim, deixar um estudante de medicina em sala de aula.

Além do veículo especial para conseguir chegar ao centro de formação médica, o jovem Leandro Silva de Sousa, 21, desloca-se em uma maca por laboratórios e auditórios, além de assistir a aulas, por até oito horas, deitado de bruços.

Desde março deste ano, o estudante do segundo período do curso mais concorrido da UFPI enfrenta a pobreza, olhares curiosos, dores posturais e a falta quase completa de acessibilidade na estrutura da universidade para seguir o propósito de ser médico.

“Tenho que lutar todos os dias contra a adversidade, colocar fé e perseverança na cabeça para seguir em frente e nunca deixar de pensar que tudo é possível, que as coisas irão melhorar”, diz.

Leandro ficou paraplégico após levar cinco tiros ao tentar apartar uma briga entre amigos há quatro anos. Um tiro no fígado, um no pulmão, um na barriga, um de raspão na perna e outro na coluna.

Ainda está alojada a bala que provocou a lesão medular, atingindo sua vértebra T11, o que o fez perder os movimentos e parte da sensibilidade tátil da cintura para baixo.

O homem que o baleou à queima-roupa está solto à espera do julgamento -esse alegou que não queria nenhuma intervenção na briga.

Leandro já foi avisado de que é necessária uma cirurgia para a retirada do projétil, pois, da maneira como está, há risco de os desdobramentos da lesão medular se ampliarem. Ele resiste, pois não quer parar o curso agora, não quer deixar a turma, não quer atrasar os estudos. Leandro tem pressa.

“Decidi ser médico vendo o sofrimento das pessoas no hospital, enquanto eu mesmo fiquei internado e passava por dores horríveis emocionais e físicas. Quero fazer algo para melhorar a saúde no Brasil, para diminuir a falta de acesso a cuidados de qualidade.”

Na adolescência, quase virou jogador de futebol. Conseguiu passar em peneiras, aos 14 anos, para jogar na Ponte Preta, no Mogi Mirim e no São Caetano. A família não permitiu que ele se mudasse para São Paulo.

Para realizar o desejo de ser médico, Leandro escreveu uma carta na qual relatava sua situação e pedia uma bolsa ao dono do mais conceituado cursinho preparatório do Piauí. Conseguiu e pôde, inclusive, fazer treinamentos extras como o de redação.

Só desfrutou da bolsa por três meses, pois, por ficar até nove horas sentado numa mesma posição, estudando, abriu-se uma úlcera de pressão no glúteo, ferida que pode comprometer profundamente a parte afetada se não for bem tratada.

Sem acesso à reabilitação adequada e à orientação médica especializada, o estudante se expunha sem ter total noção dos riscos que corria.

Foi proibido pelos médicos de continuar se sentando na cadeira de rodas. Deveria, a partir dali até a cicatrização total da ferida, permanecer deitado, de bruços, para todas as suas atividades.

“Comecei, então, a estudar em casa mesmo. Eu já sabia que tinha de ter método, rotina e tive ajuda e incentivo de uma grande amiga que também queria fazer medicina, mas, infelizmente, ainda não conseguiu passar. Nunca fui estudioso, mas estava determinado a conseguir.”

Três anos de tentativas depois, Leandro foi aprovado em direito, ciência da computação e medicina.

“Minha primeira nota na redação do Enem foi 200, saltei para 600 e, no último, consegui 860. Com preparo a gente consegue chegar lá.”

No primeiro semestre de aulas, em meados de 2017, com a carga horária extensa do curso, de até dez horas de estudo por dia, uma ferida surgiu de novo no glúteo de Leandro.

“Fiquei desesperado, porque ia perder uma grande oportunidade. Foi quando me deram a ideia de vir para a universidade de maca.”

MORADIA

O estudante mora em uma quitinete com cerca de 30 m² nas proximidades da UFPI, com a mãe e a cuidadora, Francisca Leite Silva, 44. Mudou-se da casa emprestada em que morava antes para tentar facilitar os deslocamentos.

A residência tem uma geladeira amassada, uma cama de casal, um fogão velho, um colchão inflável, uma televisão e quinquilharias. O ar-condicionado passa longe de ser luxo, pois em Teresina temperaturas acima de 30ºC são rotina.

Leandro toma banho deitado na sala, pois não caberia com maca, ou mesmo cadeira de rodas, no microbanheiro. “Alaga tudo, mas a mãe seca de boa vontade.” O pai, Genildo William de Sousa, 40, é caminhoneiro e sustenta a família com R$ 1.400. Como não cabe no cubículo, fica na casa da filha mais velha e aparece quando não está na estrada.

A família paga R$ 450 de aluguel e gasta mais R$ 1.600 mensais com a ambulância que desloca Leandro até o campus. A conta não fecha.

“O apoio da minha turma de faculdade foi fundamental. Eles fizeram uma campanha para me auxiliar com as despesas e comprar uma cadeira de rodas especial, que fica em pé, que poderá me ajudar.”

A vaquinha, que mobilizou centenas de pessoas, juntou R$ 28 mil, que não devem durar muito tempo. Leandro ainda precisa fazer uma cirurgia para fechar a ferida aberta nas nádegas, o que não tem conseguido realizar pelo SUS.

Caso consiga o procedimento, ele deve ainda ir às aulas na maca por três ou quatro meses. Criou-se até uma maneira para que analise lâminas no microscópio deitado.

“Para não abrir novamente, pretendo, mesmo depois de a ferida estar cicatrizada, assistir às aulas teóricas deitado. Preciso me preservar. Também preciso fazer uma reabilitação boa, não sei nem mexer na cadeira de rodas, fazer o básico com essa minha nova condição de vida.”

Djalma Barros de Brito Filho, 20, é um dos fiéis escudeiros de Leandro em classe. Ele considera a presença do colega em sala, na maca, algo “encantador”, que criou afeto na turma. “Ele gera uma empatia natural nas pessoas. A forma como encara as coisas, de maneira tão positiva, é um aprendizado para nós.”

Não houve nenhuma recusa por parte dos professores em receber o jovem na maca. Alguns se dispuseram, inclusive, a repor aulas por via eletrônica caso ele precise se ausentar da universidade.

A UFPI pretende investir R$ 4,9 milhões em uma obra que amplie as condições gerais de acessibilidade do campus, que já começou. Demandas específicas do aluno, como acessibilidade em banheiros e laboratórios, estão sendo discutidas e devem ser implantadas aos poucos.

“O curso não será mais fácil para o Leandro, mas ele terá o apoio da instituição para todo o necessário para se formar. É nossa função tornar viável a estada dele aqui”, declara Maraisa Lopes, coordenadora-geral de graduação da UFPI.

A universidade pretende assumir o transporte de Leandro e oferecer a ele uma bolsa de assistência de R$ 400.

“Sou motivado a ser uma pessoa feliz. Estou aprendendo a lidar com a minha nova condição. Isso agora é minha história, jamais vou ignorar isso e vou me preparar para ajudar pessoas na mesma condição que a minha.”