No dia 11 do corrente, o editorialista de O Estado de S. Paulo cuida das revelações do site The Intercept. Bota o dedo na ferida: “Se as mensagens forem verdadeiras, indicam uma relação totalmente inadequada – e talvez ilegal – entre o magistrado e os procuradores da República, com implicações políticas e jurídicas ainda difíceis de mensurar. Por muito menos, outros ministros já foram demitidos”.

Em seguida, pondera: “São, portanto, mensagens de caráter privado, e sua interceptação, sem mandado judicial, é criminosa, razão pela qual são inválidas como prova num eventual juízo e, em princípio, não podem ser aceitas como evidência de vício em decisões judiciais tomadas no âmbito da Lava Jato”.

Segue o enterro: “Como explicou o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, ‘a troca de mensagens entre juiz e Estado acusador tem de ser no processo, com absoluta publicidade’, e não por meios privados, sugerindo a intenção de trabalhar em parceria – o que cria gritante desvantagem para a parte acusada. Ou seja, tanto o ministro Moro como os procuradores da Lava Jato não enxergam em sua relação bastante amistosa e, às vezes, colaborativa algo que fere um dos princípios mais comezinhos do Estado de Direito, aquele que presume simetria entre acusação e defesa no tribunal”.

O juiz Sérgio Moro e o parquet de Curitiba não se cansaram de afirmar e reafirmar publicamente seu empenho em entabular relações promíscuas com a mídia, a grande, a pequena e a desprezível, no propósito de convocar a “opinião pública” à cruzada anticorrupção.

As manifestações dos funcionários da Justiça nas chamadas redes sociais contradizem os princípios da equidade, publicidade e impessoalidade. Vamos começar pelo começo: ao prestar concurso para carreiras de Estado que conferem a prerrogativa de acusar e julgar, os candidatos deveriam estar cientes da natureza e implicações de suas funções. São carreiras fundamentais para a sustentação do Estado Democrático de Direito. Por isso, o exercício dessas nobres funções impõe a seus titulares regras de comportamento mais estritas que aquelas impostas aos cidadãos acusados ou julgados por eles.

As garantias da publicidade do procedimento legal são, na verdade, uma defesa do cidadão acusado – e ainda inocente – contra os arcanos do poder. Pois essas conquistas da modernidade, das quais não se pode abrir mão, têm sido pisoteadas por quem deveria defendê-las.

Os justiceiros de Curitiba agem conforme o ensinamento atribuído equivocadamente a Niccolò Machiavelli: “Os fins justificam os meios”. Estamos diante da “privatização”e da particularização das funções públicas. No Brasil de hoje, a maior ameaça ao celebrado Estado Democrático de Direito está abrigada nas burocracias de Estado encarregadas de vigiar e punir. O roteiro da autodestruição das instituições tem sido escrito e reescrito, com esmero, por agentes do poder, cujo dever funcional é defender as garantias constitucionais contra os arroubos, sim, populistas, das maiorias eventuais e evanescentes. A invasão insidiosa do privatismo nas carreiras de Estado transforma essas burocracias, primeiro, em instrumentos do poder descontrolado e, depois, em poderes fora de controle.

A privatização do Estado não se circunscreve à corrupção promovida pela grande empresa nos gabinetes dos políticos, ao empreendedorismo das milícias formadas por agentes da segurança pública e por outros fardados e armados. As burocracias privatizadas justificam suas ações na virtude auto-alegada. É atalho maroto para subverter os deveres da fiscalização e da aplicação da lei e transformá-los num realejo de autojustificativas narcisisticamente corporativas. Esse foi o teor das manifestações da Associação Nacional dos Juízes Federais e da entidade similar do Ministério Público Federal. Não bastasse a administração de copa e cozinha do consórcio Bolsonaro, filhos & Guedes, o País é entregue à ignorância de juízes e promotores.

Nessa barafunda institucional, quem vai proteger os direitos dos cidadãos e dizer a lei?

 

Moro e Dallagnol são apenas peões do “imperialismo jurídico”

 

As revelações do Intercept demonstram o que todos já sabiam, mas não tinham como provar cabalmente: a condenação de Lula é uma gigantesca farsa jurídica.

Em qualquer país minimamente civilizado, o processo contra Lula, bem como boa parte da Lava Jato, já teriam sido anulados há muito, face aos gritantes atropelos da presunção da inocência e do devido processo legal.

De fato, a Lava Jato implantou verdadeiro vale tudo contra o PT e Lula, o que incluiu conduções coercitivas ilegais, tortura psicológica de testemunhas, indução de delações direcionadas, vazamentos ilegais de escutas telefônicas, uso equivocado da inferência bayesiana e um oceano de convicções políticas num deserto de provas.

Até mesmo o escritório dos advogados de Lula foi grampeado pelos justiceiros convictos. Nos EUA, país que inspira nossos justiceiros, o grampeamento de um escritório de advocacia é crime gravíssimo, que anula automaticamente qualquer processo e leva à cadeia seus autores.

Mas, com o apoio da imprensa e dos verdadeiros donos do poder, os nossos justiceiros convictos tornaram-se heróis. Heróis da causa do antipetismo e de um protofascismo galopante, que acabou triunfando em eleições manipuladas pelas fake news e pela fake justice.

Assim, o jogo combinado entre o juiz e os procuradores serviu a um grande propósito político, além das meras ambições pessoais.

Contudo, isso é apenas uma pequena parte da história.

A Lava Jato distorcida e politicamente motivada não foi criada e conduzida por Moro ou Dallagnol.

Ela foi criada e instruída pelo Departamento de Estado dos EUA (DOJ). Isso é público e notório.

Com efeito, a influência dos EUA nas procuradorias brasileiras é objeto de várias mensagens diplomáticas norte-americanas, vazadas pelo Wikileaks e amplamente divulgadas em outras reportagens. Essas mensagens mostram como a Lava Jato foi criada basicamente pelo DOJ e por ele conduzida conforme seus próprios métodos.

É fato que os EUA se utilizam de suas próprias leis e do seu sistema jurídico para impor seus interesses no mundo.

Note-se, a esse respeito, que a Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), lei norte-americana que busca coibir que companhias façam pagamentos a funcionários de governos em troca de vantagens a seus negócios, tem nítido caráter extraterritorial.

De fato, para o Departamento de Justiça norte-americano (DOJ), os atos de corrupção investigados podem ter ocorrido em qualquer país, desde que a empresa mantenha vínculos, ainda que mínimos, com os EUA.

Assim, enquadram-se nessa lei empresas que tenham ações em bolsas americanas, investimentos ou mesmo contas bancárias nos EUA.

Na visão do governo norte-americano, essa lei (bem como outras) teria lhe propiciado uma espécie de jurisdição internacional para investigar casos de corrupção em todo o mundo. Como dificilmente uma empresa internacionalizada não tem interesses nos EUA, isso submete todas as empresas de alguma relevância ao crivo jurídico e político da lei norte-americana.

Dessa maneira, o combate aparentemente neutro à corrupção em nível internacional pode ser facilmente desvirtuado para beneficiar apenas interesses geopolíticos e geoeconômicos específicos.

Em seu recente livro “The American Trap” (A Armadilha Americana), Frederic Pierucci, ex-executivo da companhia francesa Alstom, denuncia que os EUA usam suas leis e seu sistema de cooperação jurídica internacional como “arma econômica” para eliminar concorrentes de empresas norte-americanas.

Haveria, assim, uma espécie de “imperialismo jurídico”, que contribui decisivamente para reforçar os interesses econômicos e políticos dos EUA em todo o mundo.

Pierucci foi preso pelo FBI em Nova Iorque, com base na citada lei dos EUA, sob a alegação de que havia participado de um pagamento de propina na Indonésia.

Independentemente da consistência ou não da acusação, o absurdo salta aos olhos: um executivo de uma empresa francesa, que teria cometido um suposto crime na Indonésia, é preso pelos EUA, em território norte-americano, com base numa lei norte-americana.

O fato concreto é que essa pressão do DOJ dos EUA sobre a Alstom resultou na aquisição de boa parte dessa empresa pela General Electric dos EUA, que estava de olho na firma francesa há muito tempo. Coincidência?

O mesmo acontece agora com a chinesa Huawei, que os EUA querem destruir.

O DOJ acionou o governo canadense para prender sua CEO, Meng Wanzhou, em Vancouver, sob a alegação de ter violado sanções econômicas dos EUA ao Irã. Coincidência?

Outro fato concreto é que a operação de Moro e Dallagnol contribuiu para destruir a cadeia de petróleo e gás, ensejou a venda, a preços aviltados, das reservas do pré-sal, solapou a nossa competitiva construção civil pesada e comprometeu projetos estratégicos na área da defesa, como o relativo à construção de submarinos nucleares.

Conforme estudo da consultoria GO Associados, a Lava Jato teria ocasionado uma diminuição do PIB da ordem de 2,5%, apenas em 2015, contribuindo para desempregar centenas de milhares de brasileiras e brasileiros. Coincidência?

Duvido.

Objetivamente, a Lava Jato distorcida acabou beneficiando os interesses geoeconômicos e geopolíticos dos EUA no Brasil e em toda nossa região. Já os interesses objetivos que foram fortemente prejudicados foram os brasileiros.

A perseguição a Lula e ao PT foi apenas um meio para se alcançar fins maiores. E Moro e Dallagnol foram apenas peões num jogo de poder mundial, do qual ou eles não têm consciência ou ao qual serviram de forma proposital, o que seria muito pior. Prefiro não acreditar nessa hipótese.

E há também coisas que ainda não sabemos.

Por exemplo, o que levou a Embraer a aceitar tão prontamente ser comprada pela Boeing? Foram apenas considerações de negócios ou o DOJ, de alguma forma, “influenciou” a venda?

Salientamos que a Embraer foi acusada pelo DOJ de ter praticado propina em compras de aeronaves na República Dominicana e na Índia. Coincidência? Talvez não.

Num país soberano, isso tudo seria investigado a sério e os eventuais culpados exemplarmente punidos.

No Brasil de Bolsonaro, no país de submissão total aos EUA e no qual Moro e Dallagnol são tratados como heróis, isso dificilmente ocorrerá.

Nesse triste país, já praticamente transformado numa colônia, o “imperialismo jurídico” do DOJ fincou raízes profundas em nosso judiciário.

É provável que uma investigação sobre ao assunto, se vier, se restrinja às participações pessoais de Moro e Dallagnol, o que poderia até beneficiar Bolsonaro, que aparentemente quer livrar-se de Moro. Uma operação de “contenção de danos” para preservar o Executivo e o Judiciário já está em andamento.

Se assim ocorrer, sequer a superfície do problema será arranhada.

Moro, Dallagnol e até o próprio Bolsonaro são mero peões. Suas eventuais ilegalidades são apenas instrumentos para a grande ilegalidade de se destruir a democracia, a soberania e a economia do país.

Lula já tinha avisado que a questão central é a da soberania.