Discurso de Michele representou bolsistas da turma de Direito em colação de grau da PUC-SP na última quinta-feira – Arquivo pessoal

O discurso de formatura de uma bolsista da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) está emocionando as redes sociais. Ao falar em nome de todos os bolsistas do curso que estavam colando grau, a formanda Michele Alves, de 23 anos, que é filha de empregada doméstica, nascida em Macaúbas, de onde se mudou com a família aos 12 anos de idade, fez duras críticas ao ambiente universitário, ressaltando os desafios diários que ela e seus colegas enfrentaram, como frases preconceituosas vindas de alunos e professores.

A cerimônia de formatura aconteceu na última quinta-feira. Dedicando seu discurso às famílias que “a muito custo mantiveram seus filhos na universidade e aos estudantes que perderam pelo menos três horas diárias em transportes públicos”, Michele citou a “realidade cruel que nos foi apresentada no momento em que cruzamos os portões da Bartira e da Monte Alegre”, referindo-se à localização da PUC-SP.

– Resistimos às piadas sobre pobres, às críticas sobre as esmolas que o governo nos dava, aos discursos reacionários da elite e a sua falaciosa meritocracia. Resistimos à falta de inglês fluente, de roupa social e linguajar rebuscado que o ambiente acadêmico nos exigia – disse a nova advogada ao microfone. – Resistimos à falta de apoio financeiro e educacional da Fundação São Paulo, aos discursos da vitimização das minorias e à suposta autonomia do indivíduo na construção do seu próprio futuro. Resistimos também aos insultos feitos à nossa classe, aos desabafos dos colegas sobre empregadas domésticas e porteiros. Mal sabiam que esses profissionais eram na verdade nossos pais.

De acordo com a formanda, no terceiro dia de aula uma professora disse a seus alunos que “não estudem Direito Civil por sinopse, porque até a filha da minha empregada que faz Direito na ‘Uniesquina’ estuda Direito por sinopse”. Segundo Michele, depois disso ela ligou chorando para a mãe, empregada doméstica, e quase desistiu de continuar na universidade. Foi a mãe quem a fez enxergar que ela era totalmente capaz de conseguir o diploma.

Michele Alves, de 23 anos, ao lado de sua mãe na formatura – Arquivo pessoal

— A ideia do discurso era inspirar outras pessoas. É por isso que vale a pena (falar), pela mensagem que consegui transmitir — contou Michele, por telefone, ao GLOBO nesta segunda-feira. — Acabei de ver a repercussão, meus amigos me mandaram os prints, fiquei assustada.

A formanda se mudou para São Paulo aos 12 anos, onde permenece residindo até os dias atuais. Aprovada no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e funcionária de um escritório de advocacia em São Paulo, Michele acredita que o apoio de seus chefes foi importante. No entanto, ela conta que não encontrava o mesmo respaldo em todo lugar. Segundo a advogada, o comentário da professora que ela destacou não foi um caso isolado.

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— É uma resistência diária. Há professores que fazem comentários julgando como os alunos vão vestidos para a aula, por exemplo — relatou Michele, deixando claro, por outro lado, que recebeu incentivo de parte dos professores. — Temos limitações financeiras e de classe, falta de roupas adequadas para se apresentar em entrevistas, por exemplo.

Leia abaixo o discurso na íntegra:
“Caros colegas, pais, professores, convidados, boa noite. Depois desse discurso animado, eu vim com um discurso rápido para o mesmo e um discurso que fala um pouco da nossa realidade aqui na PUC. Nessa noite tão especial, na qual relembramos nossa trajetória na Pontifícia, gostaria de falar sobre resistência, palavra tão usada por nós ao longo desses cinco anos. Todavia, não quero aqui abranger toda e qualquer resistência. Quero falar de uma em específico, da resistência que uma parcela dos formandos — que, infelizmente, são minoria neste evento — enfrentaram durante sua trajetória acadêmica.

Me dedico à resistência daqueles que cresceram sem privilégios, sem conforto e sem garantia de um futuro promissor, daqueles que foram silenciados na universidade quando pediram voz e que carregaram, desde cedo, o fardo do não pertencimento às classes dominantes.

Me dedico à resistência das famílias que a muito custo mantiveram seus filhos na universidade, à resistência dos estudantes que perderam, no mínimo, três horas diárias em transportes públicos. Hoje, trago a história de jovens sonhadores que há cinco anos atrás iniciaram uma história de resistência nessa universidade. Trago a história de resistência da periferia, dos pretos, dos descendentes de nordestinos e dos estudantes de escola pública.

Nós, formandos bolsistas resistimos à PUC São Paulo, aos sonhos que nos foram roubados e à realidade cruel que nos foi apresentada no momento em que cruzamos os portões da Bartira e da Monte Alegre. Nós resistimos às piadas sobre pobres, às críticas sobre as esmolas que o governo nos dava, aos discursos reacionários da elite e a sua falaciosa meritocracia. Resistimos à falta de inglês fluente, de roupa social e linguajar rebuscado que o ambiente acadêmico nos exigia.

Resistimos também à falta de apoio financeiro e educacional da Fundação São Paulo, aos discursos da vitimização das minorias e à suposta autonomia do indivíduo na construção do seu próprio futuro. Resistimos também aos insultos feitos a nossa classe, aos desabafos dos colegas sobre suas empregadas domésticas e seus porteiros. Mal sabiam que esses profissionais eram na verdade nossos pais.

No mais, resistimos aos professores que não compreenderam nossa realidade e limitações e faziam comentários do tipo: por favor, não estudem Direito Civil por sinopse, porque até a filha da minha empregada que faz Direito na ‘Uniesquina’ estuda Direito por sinopse. Essa frase foi dita por uma professora de Direito Civil no meu terceiro dia de aula. Após escutá-la, meu coração ficou em pedaços, pois naquele dia soube que a faculdade de Direito da PUC São Paulo não era para mim.
Liguei para minha mãe, empregada doméstica, chorando, e disse que iria desistir. Entretanto, após alguns minutos de choro compartilhado, ela me fez enxergar o quanto eu precisava resistir àquela situação e mostrar à PUC e a mim mesma o quanto eu era capaz de obter este diploma.

Essa história não é apenas minha, mas de todos os bolsistas formandos da PUC São Paulo. Somos os filhos e filhas do gari, da faxineira, do pedreiro, do motorista e da mãe solteira. Por isso, a eles, nossos maiores inspiradores, dedicamos nossa história de resistência nessa universidade. Que nossa história inspire outros jovens pobres a resistirem.

Avante, companheiros. Avante, pois nossa luta está apenas começando. Por fim, como nunca é tarde para dizer, ‘Fora Temer’. Muito obrigada.